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Ludoterapia
O
brincar
Em
um mundo regido pelo capital a produção
de bens é vista como fundamental. Neste
contexto, todos os elementos que significam produção
de bens são desvalorizados e desqualificados.
Vemos esse fenômeno ocorrer principalmente
com a arte, com o brincar e com a religiosidade.
Uma característica do brincar é
que nada produz. O brincar é apenas um
modo de se estar em uma situação.
O brincar, freqüentemente, é desqualificado
por nada produzir e por estar sempre colocado
na categoria do infantil, então é
algo sem muita importância.
No entanto, se contemplarmos a brincadeira, encontraremos
uma complexidade de registros fenomênicos
que nos permitem acolher a brincadeira de um modo
fecundo e interessante nas situações
clínicas.
O modo mais freqüente pelo qual a brincadeira
foi abordada na Psicologia foi como ensaio para
a vida social e para a vida adulta. O que, em
minha opinião, é ainda um modo pobre
de enfocar o brincar. Tratar o brincar dessa maneira
é reproduzi-lo a mero ensaio para o que
será importante mais tarde: a vida social
e os papéis sociais. Esta é uma
visão que desqualifica o jogo naquilo que
ele tem de mais fecundo. No entanto, se desejarmos
preservar a complexidade do brincar, será
fundamental recuperar dois registros fundamentais:
1 -
Ao brincar a criança institui situações
organizadas em termos de espaço e de
tempo. Brincando ela funda mundos. Ao brincar
ela não está simplesmente projetando
conteúdos psíquicos no jogo, mas
está constituindo mundos e estabelecendo
a possibilidade de transformar a realidade dada
por meio de seu gesto. Uma criança, ao
jogar em um determinado meio ambiente, o ressignifica,
imprimindo a ele uma organização
diferente daquela que lhe foi oferecida. Isto
significa que todo brincar demanda um tipo de
ruptura com o que é dado. O brincar funda
mundos, funda a possibilidade de a criança
estar no mundo e instruir modos de ser.
2 - A criança, ao longo de seu desenvolvimento,
coloca em jogo as diversas facetas do seu ser:
a questão do corpo, a questão
do seu psiquismo, com todas as angústias
que visitam e a necessidade de projetar um destino.
Este ponto é importantíssimo,
mas muito pouco discutido. O ser humano tem
a necessidade de criar sentidos, pois é
parte da estrutura da pessoa humana a capacidade
de projetar horizontes futuros.
Quando uma criança brinca, institui um
mundo que se organiza em termos de espaço
e de tempo e, ao mesmo tempo, tem a oportunidade
de projetar um horizonte existencial. No momento
em que uma criança está criando
um jogo a partir dos objetos que lhe foram oferecidos,
estão atuando, ao mesmo tempo:
a) A biografia da criança: a
maneira como ela, de alguma forma, presentifica,
organiza e compõe o jogo permite que se
façam algumas leituras teóricas
que ocorre no brincar. Especialmente, há
a possibilidade de se realizar uma leitura do
passado da criança e das suas angústias
relacionadas à sua história.
b) Uma tentativa de formular uma solução
para as suas questões que é pressentimento
do futuro, acontecendo o projetar de um horizonte
existencial possível. O brincar promove
uma transição entre o agora e o
ainda-não.
A criança que brinca abre uma situação
no agora e, ao mesmo tempo, funda mundos para
o amanhã. A brincadeira promove a passagem
entre mundos e entre tempos. O brincar favorece
o aparecimento do gesto que cria sentidos futuros,
sustentado pelo movimento que brota da interioridade
da criança e que se apresenta como anseio
de si em direção a um futuro pressentido.
O anseio de si aparece no jogo e é o fundamento
e a matriz da capacidade de sonhar, que por sua
vez acontece em registros diferentes. Há
o sonhar no registro psíquico, que é
aquilo que normalmente se aborda na literatura
psicanalítica como sonhar, mas há
o sonho da utopia, que é o fundamento da
esperança. O jogo promove o cultivo da
esperança.
A clínica nos mostra não só
a importância do desejo, faceta fundamental
do ser humano que atravessa os diferentes tipos
de campos simbólicos e que aparece como
um dos núcleos do sonho, mas também
revela que a capacidade de sonhar e de jogar sustenta
a esperança do futuro. O jogo promove a
possibilidade de construir uma utopia. Este é
um registro fundamental presente na capacidade
de brincar. No jogo a criança encontra-se
a matriz do que serão as suas necessidades
fundamentais quando adulta e quando idosa. Assim
com a criança, o adulto e o idoso também
constituem mundos e habitam os seus espaços
pessoais e profissionais. Todo ser humano precisa
organizar, compor o seu espaço e tempo
pessoal e projetar um destino possível
para si.
Elementos presentes já na estrutura dos
primeiros jogos criados pela criança.
Ao brincar a criança joga com símbolos.
Este fenômeno também merece discussão
porque o mais habitual é considerar o brincar
como uma projeção de conteúdos
internos para o jogo. A criança, ao jogar,
estaria expressando e abrindo o campo simbólico,
o que permitiria a alguns analistas fazer uma
leitura simbólica daquilo que está
no jogo.
Jogar com símbolos significa poder se colocar
em trânsito. Uma boneca pode representar
a mãe ou uma parte do corpo da criança.
Entretanto, o mais importante é que, enquanto
ela joga, significando a boneca como sua mãe
ou como parte de seu corpo, ela está realizando
uma travessia por meio da boneca para outros sentidos
de realidade e de vida que vão se descortinando
gradativamente. Por meio do jogo e do brincar
com símbolos a criança se põe
em devir.
O brincar com símbolos nasce de um testemunhar.
Depois do testemunho de alguém, o Outro
estará presente de forma indireta nos brinquedos
simbólicos que a criança estará
utilizando. Antes de o jogo ser devir, ele tem
a função de sustentar a criança.
Ele dará um entorno à criança,
para que ela não caia em agonias impensáveis,
ou seja, na solidão absoluta ou na experiência
de despedaçamento do corpo. A criança
utiliza os objetos ao redor de si para se sustentar
e, a partir do momento em que surge uma testemunha
do que acontece com ela, o jogo tende a portar
o olhar do outro. O brinquedo é significado
pela qualidade da presença daquele que
testemunhou a situação da criança
frente ao objeto. Assim sendo, o brinquedo deixa
de ser simples sensorialidade e passa a portar
o rosto humano.
O brincar, por suas características, cura
a criança e o homem. Independentes das
intervenções e das interpretações
que um analista possa fazer frente ao jogo, ele
por si mesmo promove a transformação
e a cura. Embora o brincar não produza
e seja aparentemente algo só da infância,
ele apresenta os elementos ou matriz do que é
fundamental para o ser humano.
Portanto, cada tipo de situação
demanda um tipo de manejo e acolhimento do modo
de ser da criança. É importante
compreendermos essa diversidade para que possamos
acolher a singularidade e as necessidades de cada
criança em sua relação com
os brinquedos.
Autora: Ana Lúcia B.
Simões
Crp 06/78603
Psicóloga-Clínica
Contato: nalubs@hotmail.com
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